Alojamento Local e Condomínio – Pode o condomínio opor-se com base no título constitutivo de propriedade horizontal?

A atividade de exploração de estabelecimento de alojamento local encontra-se regulada no Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, alterado pela Lei n.º 62/2018, de 22 de agosto.

 

É bem sabido que, quando instalada em frações de edifícios constituídos em propriedade horizontal (vulgo, condomínios), esta prática tem sido fonte de discórdia e conflito entre proprietários dessas mesmas frações e os restantes condóminos. Com efeito, estes últimos deparam-se, abruptamente, com o seu prédio invadido por estranhos, na sua grande maioria turistas, o que potencia a perda de privacidade nas áreas comuns, causa níveis de ruído elevados que perturbam o sossego dos condóminos em horários noturnos e, muitas vezes, resulta no aumento das despesas com a conservação e fruição das partes comuns do imóvel (particularmente em condomínios com piscina e elevadores).

 

Podemos concluir que aqui se encontra um conflito de interesses juridicamente protegidos: por um lado, os direitos de propriedade e de liberdade de iniciativa económica; por outro, os direitos de personalidade dos restantes condóminos, mormente, o direito ao sossego.

 

Posto isto, que obstáculos pode levantar o condomínio à afetação de uma fração à atividade de alojamento local? Sem prejuízo de uma análise detalhada de todas as limitações legais impostas à atividade do alojamento local a realizar em artigos subsequentes, importa agora referir a problemática atinente a uma eventual desconformidade entre o uso previsto para as frações constante do título constitutivo da propriedade horizontal e o seu uso para a instalação de uma unidade de alojamento local.

 

Nos termos do artigo 1418.º do Código Civil, os títulos constitutivos da propriedade horizontal devem conter a identificação das partes do edifício correspondentes às diversas frações, o valor relativo de cada fração, expresso em permilagem, a menção do fim a que se destina cada fração ou parte comum e o regulamento do condomínio.

 

A alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º estipula que é especialmente vedado aos condóminos dar uso diverso do fim a que a sua fração é destinada.

 

A questão que impera é então saber se, encontrando-se estipulado no título constitutivo de propriedade horizontal que determinada fração é destinada a habitação, a sua afetação à atividade de alojamento local constitui uso diverso daquele e, por esse motivo, se o condomínio tem argumentos para, em sede de assembleia geral de condóminos ou mediante ação judicial, colocar termo a esse uso.

 

É comum constar do título constitutivo da propriedade horizontal que certas frações estão destinadas a habitação, outras a comércio e outras a indústria.

 

O uso habitacional reporta-se à instalação em determinada fração de um centro de vida doméstico, de cariz familiar ou unipessoal, pressupondo um certo caráter de permanência, que pode ser concretizado através do uso residencial feito pelo proprietário da fração ou pela afetação de fração à atividade de arrendamento urbano. Pese embora esta última já revestir um certo caráter comercial, os locatários que porventura aí se venham a instalar procurarão igualmente um imóvel no qual residir, com um relativo grau de definitividade, subsumindo-se assim tal situação ao conceito de habitação.

 

Mas será que, atenta à sua natureza turística/hoteleira, o contrato de prestação de serviços de alojamento local encontra cabimento no conceito de habitação para o qual o título constitutivo de propriedade horizontal destina as frações?

 

A resposta a esta questão carece de uma breve incursão pelo regime jurídico desta figura, já acima mencionado.

 

A noção de estabelecimento de alojamento local encontra-se plasmada no n.º do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto: “Consideram-se «estabelecimentos de alojamento local» aqueles que prestam serviços de alojamento temporário, nomeadamente a turistas, mediante remuneração, e que reúnam os requisitos previstos no presente decreto-lei.”

 

Da presente disposição retira-se, precisamente, que o alojamento local reveste caráter temporário, o que nos induz à aceção de que um apartamento destinado a esta atividade apresenta características análogas a uma qualquer unidade hoteleira, conduzindo-nos ao entendimento de que não seria compatível com o uso para habitação conforme estabelecido no título constitutivo de propriedade horizontal do prédio.

 

Contudo, este regime jurídico apresenta alguns indícios bastantes para duvidarmos da liquidez desta conclusão.

 

A alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º deste diploma aponta que da comunicação prévia à Câmara Municipal para efeito de instalação do estabelecimento de alojamento local deve constar a autorização de utilização, ou título de utilização válido do imóvel, abstendo-se de aprofundar a natureza desta autorização, nomeadamente a destrinça entre a eventual natureza civil ou comercial deste negócio.

 

Desse modo, o Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local aparenta sugerir que é irrelevante qual o tipo de autorização de utilização, ou título de utilização válido do imóvel, o que, por sua vez, leva-nos a crer que a figura do alojamento local poderá encontrar enquadramento numa aceção ampla do conceito de habitação.

 

Caso se adote este entendimento, significaria que, na eventualidade de no título constitutivo de propriedade horizontal resultar que determinada fração está afeta ao uso exclusivo para habitação, a instalação de um serviço de alojamento local seria permitida, em sentido análogo ao entendimento que é feito para o arrendamento urbano.

 

No entanto, a questão está longe de ser pacífica.

 

As decisões jurisprudenciais que versam sobre a presente questão não têm sido capazes de pôr termo à discussão, sendo várias e contraditórias entre si.

 

Vejamos dois exemplos.

 

O acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15.09.2016 vem concluir que “Se no título constitutivo da propriedade horizontal apenas se estabelece que determinada fracção se destina à habitação, não existe, em princípio, impedimento a que o seu proprietário a afecte a alojamento local de turistas; O conceito de alojamento está contido no conceito de habitação; O facto de determinada utilização ser feita mediante contrato de prestação de serviços não é bastante para caracterizar a finalidade dessa utilização, tudo dependendo da forma como essa prestação de serviços é efectuada.

 

Em sentido completamente inverso, dispõe o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-10-2016, que “Destinando-se a fracção autónoma, segundo o título constitutivo, a habitação, não lhe pode ser dado outro destino (alojamento mobilado para turistas) sendo para tanto irrelevante o licenciamento do local para a actividade comercial acima referida por aquelas entidades.”.

 

No fim do dia, perante tal incoerência por parte dos Tribunais Portugueses, esta querela reconduzir-se-á a um complexo conflito de direitos fundamentais, nomeadamente resultante da contraposição entre o direito de propriedade e liberdade de iniciativa económica do proprietário da fração afeta ao alojamento local e da urgente necessidade de salvaguarda dos direitos de personalidade dos restantes condóminos, particularmente o direito ao sossego.

 

Não obstante, podemos afirmar com relativa segurança que, caso do título constitutivo de propriedade horizontal conste expressamente que às frações está vedada a sua afetação a serviços de alojamento local, o condomínio (ou qualquer condómino) terá legitimidade para demandar judicialmente o condómino que utilize a sua fração para este fim, com o propósito de fazer cessar tal utilização indevida.

 

Face a tal situação, impera no caso em concreto, uma análise exaustiva do teor do título constitutivo da propriedade horizontal, sem a qual não será possível realizar um juízo conclusivo.

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